Memorial do Processo- Na Solidão, direção de Thales Duarte
Na solidão é uma obra inspirada no texto “Na solidão dos campos de algodão”, do dramaturgo francês Bernard Marie Koltès (1987). Utilizando os signos deste texto foi possível iniciar e desenvolver o trabalho. A partir da dramaturgia de Koltès, foi possível dividir o texto em 2 quadros, no qual este memorial relatará o 1º quadro. Dividiu-se o quadro inicial entre os cinco atores, Ismáiler, Érica, Shaiane,Wesley e Thales, formando-se assim – e utilizando os dois seres que permeiam a obra de Koltès – os fornecedor (es) e os cliente (s). Quanto a referência poética está sendo utilizado “O Teatro da Crueldade” (primeiro manifesto),de Antonin Artaud, sendo assim, o texto será o ponto de partida para a criação teatral, para a encenação, mas linguagem do espetáculo, também se dará pela linguagem visual dos objetos, do movimento, atitudes, gestos, pelo espaço, sons, gritos e luzes. A palavra sendo expandida em todas as possibilidades.
Nos dois primeiros ensaios o foco foi o texto que já dividido, neste caso o 1º quadro, portanto, a dramaturgia deste se deu através das improvisações, mas antes de tudo, era necessário extrair o sentido das palavras deste quadro e assim trabalhar as questões de pausas e entonações, de como se desenvolvia a sensibilidade e até mesmo a expansão deste texto que começara ganhar forma e movimento por meio da expressão vocal. Os “personagens” nesta obra foram divididos assim; Érica, Thales e Wesley, como fornecedores; Ismáiler e Shaiane, com clientes.
Ao decorrer dos ensaios, foi- se utilizando objetos que dessem possibilidades de movimentos e criação de conflitos entres estes seres quase inimigos, mas submissos um ao outro, daí, utilizou-se uma corda de mais ou menos 3 metros, surgiu então, através da corda e da improvisação, a tentativa de amarrar e criar um cabo de guerra entre um dos clientes e um dos fornecedores, na busca pela aproximação entre estes seres, como no sentido de que o mesmo objeto que te aproxima de alguém é o mesmo que te sufoca, prende, e exorciza.
Quanto a sonoplastia, o elenco acreditou na necessidade do som para o aprofundamento das sensibilidades e para a criação, como não houve um trabalho direto da compositora musical, até aqui, trouxemos para a obra , algumas das composições de Philip Glass como Koyaanisqatsi e The Hours, no qual foi perceptível a mudança com que a cena se desenvolvia. Decidiu-se então que essa seria a sonoplastia da obra até aqui ( neste segunda mostra).
Com relação aos aspectos visuais da obra , os ensaios aconteciam também, utilizando vídeos mostrando elementos da natureza, como, água, fogo, nuvens, sendo assim, se transformando também em iluminação, levando-se em conta de que projeção também é luz. Já a iluminação cênica da obra foi pensada, com o objetivo de criar atmosferas, utilizando refletores leds estáticos, com tons azulados e avermelhados, sem invibilizar a luz da projeção, o objetivo principal é a possibilidade de criar uma ambientação, como a de um ritual a luz do luar.
DRAMATURGIA DO 1º QUADRO DA PEÇA.
Livre adaptação de “Na solidão dos campos de algodão” de Bernard-Marie Koltès.
"Um deal é uma transação comercial acerca de valores proibidos ou estritamente controlados, e que se conclui nos espaços neutros, indefinidos, e não previstos para esse uso, entre fornecedores e solicitantes, por entendimento tácito, signos convencionais ou conversação com duplo sentido – com o objetivo de contornar os riscos de traição e trapaça que uma tal operação implica –, a não importa qual hora do dia ou da noite, independentemente das horas de abertura regulamentar dos lugares de comércio homologados, mas sobretudo nas horas de fechamento destes."
( Aqui será utilizado através da projeção, um vídeo que será gravado com o elenco, narrando este trecho).
QUADRO 1
Thales -( o fornecedor) – Se você caminha pela rua, a esta hora e neste lugar, é que você deseja algo que você não tem e, esta coisa, eu, eu posso fornecê-la a você; pois se eu estou neste lugar há mais tempo que você e por mais tempo que você, e que mesmo esta hora, que é a hora das relações selvagens entre os homens e os animais, não, é que eu tenho o que é preciso para satisfazer o desejo que passa diante de mim, e é como um peso do qual é preciso que eu me descarregue sobre qualquer um, homem ou animal, que passe diante de mim.
Shaiane -( O cliente) – Eu não caminho em um certo lugar e em uma certa hora; eu caminho, simplesmente, indo de um ponto a outro, por questões privadas que se tratam nestes pontos e não em percurso; não conheço nenhum crepúsculo nem nenhum tipo de desejo e quero ignorar os acidentes do meu percurso. Eu ia desta janela iluminada, atrás de mim, lá em cima, a esta outra janela iluminada, lá em baixo diante de mim, seguindo uma linha bem reta que atravessa você porque é onde você está deliberadamente localizado.
Wesley C ( o fornecedor) – É por isso que eu me aproximo de você, apesar da hora que é esta onde ordinariamente o homem e o animal se jogam selvagemente um sobre o outro, eu me aproximo, eu, de você, de mãos abertas e as palmas viradas para você, com a humildade daquele que propõe frente aquele que compra, com a humildade daquele que possui frente aquele que deseja; e eu vejo o seu desejo como se vê uma luz que se acende, em uma janela bem ao alto de um edifício, no crepúsculo; eu me aproximo de você como o crepúsculo aproxima esta primeira luz, lentamente, respeitosamente, quase afetuosamente, deixando, bem embaixo na rua, o animal e o homem puxarem suas coleiras e mostrarem-se selvagemente os dentes.
Ismáiler( O Cliente) – Ora, não existe nenhum meio que permita, à quem se leva de uma altura a outra altura, evitar de descer para ter que subir em seguida, com a absurdidade de dois movimentos que se anulam e o risco, entre os dois, de esmagar a cada passo os restos jogados pelas janelas; mais mora-se no alto, mais o espaço é são, mais a queda é difícil; e quando o elevador lhe deixou embaixo, ele lhe condena a caminhar no meio de tudo o que não se quis lá em cima, no meio de uma pilha de lembranças nojentas, como, no restaurante, quando o garçom anota o pedido e enumera, nas suas orelhas enojadas, todos os pratos que você digere já há algum tempo.
Érica ( O fornecedor) – Não que eu tenha adivinhado o que você pode desejar, nem que eu tenha pressa em conhecê-lo; pois o desejo do comprador é a coisa mais melancólica que há, que se contempla como um pequeno segredo que não quer senão ser aberto e que se siga o próprio ritmo antes de abrir; como um presente que se recebe embalado e que se segue o próprio ritmo ao tirar o barbante.
(O cliente) – Quanto ao que eu desejo, do qual eu pudesse me lembrar aqui, na obscuridade do crepúsculo, no meio de grunhidos de animais dos quais não notamos nem mesmo o rabo, além deste tão certeiro desejo que tenho em ver você deixar de lado a humildade, o que eu desejaria, você certamente não teria. Meu desejo, se existe um, se eu expusesse a você, queimaria seu rosto, você faria retirar as mãos com um grito e você fugiria na obscuridade.
(O fornecedor) – Você tem razão em pensar que não desço de nenhum lugar e evito os elevadores como um cão evita a água. Os elevadores são como certas drogas, o uso exagerado torna você flutuante, nunca encima nunca embaixo, tomando
linhas curvas por linhas retas, e congelando o fogo no seu centro. No entanto, desde quando estou nesse lugar, eu sei reconhecer as chamas que parecem congeladas como crepúsculo de inverno, do qual basta se aproximar, lentamente, talvez afetuosamente
para lembrar-se que não existe nenhum luar. Meu objetivo não é alcançar você, mas abrigar você do vento.
(O Cliente) – No entanto eu não tenho, para lhe agradar desejos ilícitos. Meu comércio eu faço iluminados pela claridade elétrica. Talvez eu seja prostituto, mas se o sou, meu puteiro não é deste mundo.
Thales(O fornecedor) – É por isso que sem lhe conhecer eu lhe tenho, desde a primeira palavra, tratado corretamente, desde o primeiro passo que eu dei em sua direção, um passo correto, humilde e respeitoso, sem saber se o que quer que seja em você merecia
respeito, sem nada conhecer de você que pudesse me levar a saber se a comparação de nossos dois estados autorizava que eu fosse humilde e você arrogante, eu vos deixei a arrogância por causa da hora do crepúsculo a qual nós nos aproximamos um do outro...o olha passeia e se coloca num terreno neutro e livre...
Shaiane( O cliente) – (interrompendo agressivamente) Mas que fazer do seu olhar? Olhar em direção ao céu me torna nostálgico e fitar o chão me entristece, arrepender-se de alguma coisa e lembrar-se que não a temos são ambos igualmente arrebatadores. Então é preciso olhar pra diante de si, à sua altura, qualquer que seja o nível onde o pé está provisoriamente assentado;
Ismáiler-O cliente) – .... meu olhar devia chocar cedo ou tarde qualquer coisa colocada ou caminhante na mesma altura que eu; Talvez, de fato, a única diferença que nos resta para nos distinguir, ou a única injustiça se assim você preferir, é aquela que faz que um tenha vagamente medo de um possível murro do outro;
(Coro=cliente+fornecedor)) – A regra quer que entre dois homens que se encontram deva-se sempre escolher ser aquele que ataca; e sem dúvida, nesta hora e nestes lugares, deveria aproximar-se de todo homem ou animal sobre o qual o olhar colocou-se, batê-lo e dizer a ele: não sei se era da sua intenção bater em mim, por uma razão insensata e misteriosa.
Ismáiler- (...) que de qualquer modo você não teria acreditado necessário fazer-me conhecê-la, mas, seja o que for, preferi fazê-lo primeiro, e minha razão, se ela é desatinada, ao menos não é secreta: a possibilidade que você me batesse primeiro, eu preferi ser mais rápido (a)